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Estudo de caso - Filme Shine

  • Foto do escritor: Flavia Araújo
    Flavia Araújo
  • 22 de jul.
  • 7 min de leitura

David Helfgott é um pianista, que desde cedo ganha destaque pelo seu talento e provém de uma família judia e tradicional da Austrália de 1960. Após ganhar, mais tarde, um prêmio pela sua performance no piano, desencadeia um surto e passa 10 anos internado num hospital psiquiátrico, onde é proibido de tocar. Quando uma fã o reconhece nessa instituição o leva para sua casa, possibilitando o encontro dele com sua futura esposa. 

Sendo a psicanálise uma leitura da cultura e tendo advertido, tanto Freud como Lacan, a importância de não se perder no anacronismo, pensando em conjunto a subjetividade da época, deve-se analisar a família de David como singular, porém em sua específica data, espaço, lugar. Pois é nesse carrossel em que a linguagem simbólica é construída e pode ser herdada para o Sujeito. (LOPES, 2006)

Dito isso, hoje se tem operadores que nos ajudam a pensar na constituição do Sujeito. Lacan propõe uma releitura do Édipo Freudiano, mantendo em sua essência duas operações básicas, a Alienação e a Separação. A Alienação corresponde ao Casar com a mãe. Para que haja o sujeito, primeiro é necessário alienar-se a linguagem do Outro, sendo esse Outro não só o objeto de desejo do bebê, como tendo na economia do seu desejo um espaço reservado para essa criança. (QUINET, 2000)

Aqui é necessário ressaltar a diferença entre função materna e maternagem. Maternagem seria um papel importante de cuidados básicos para a criança, que pode ser delegado a terceiros: trocar de fralda, alimentação e higiene. Já a função materna corresponde a alguém que aposte na existência de um Sujeito, que dê um lugar a esse bebê, que permita a Alienação e cumpra essa função. No caso do David, vemos seu pai assumindo essa função materna, enquanto a maternagem, supomos, foi realizada pela sua mãe. Porém, para que haja um desenvolvimento sadio da criança, esse Outro, que de início se fazia inteiro, absoluto, deve abrir espaço para maior autonomia e poder de decisão do sujeito. O que não ocorre com o pai do David, ele permanece inteiro para seu filho. Isso é exemplificado em sua fala "Ninguém vai amá-lo como eu(...) sempre estarei aqui", ou seja, não há outra pessoa que saiba como amar o David e o que é melhor para ele, apenas seu pai. (PRUDENTE, 2016)

É a operação de Separação que fala dessa quebra do Outro onipotente e que Freud coloca como Matar o pai, ou seja, ir além de. Lacan propõe a metáfora paterna, fazendo referência a um pai simbólico, que se coloca entre a mãe e o bebê e que metaforiza o lugar de ausência dessa mãe. O Nome-do-Pai, ou Não! do pai, diz então dessa proibição paterna estruturante, que possibilita a entrada no simbólico e a significação do desejo materno, assim como o encontro com o seu próprio desejo. É o Nome-do-Pai que tem função de barrar o desejo da mãe. (FINK, 2018)

Nos voltando para o David, vemos inicialmente a função materna assumida pelo pai, porém sem limites. Então quando pensamos na função paterna, vemos o comprometimento das falhas nas duas funções, pois não há quem tenha força na vida de David, que consiga fazer essa função de castrar o pai. Assim, o David permanece a mercê de um pai desmedido, que goza de um autoritarismo, no lugar de ser uma autoridade em sua vida, de forma que questioná-lo é acarreta na dissolução dos laços do David com sua família. (QUINET, 2000)

O pai de David, Peter, tem como sonho para o filho, que ele consiga vencer tocando uma das obras mais difíceis no piano. Quando nos voltamos ao Peter, vemos um sonho próprio frustrado pelo seu pai, ao quebrar seu violino e uma história de muito sofrimento, sendo valorizado pelo Peter, quem também sofreu. Seu discurso para afastar o professor de música de seu filho, foi dizer que ele não teve sofrimento nessa vida. Assim como, o motivo pelo qual a Katherine era alguém a quem se ouvir, pois passou por tempos difíceis e também era judia. 

Após seu pai decidir romper com o professor de piano e proibir seu filho de viajar e prosseguir com a carreira de pianista longe dele, apesar de terem angariado fundos para viagem, David já dá indícios de grandes consequências da ambivalência paterna em sua vida. Quando David defeca em sua banheira, podemos pensar na impossibilidade de David ir contra seu pai, parece não haver repertório para tal, então, o que acontece é a regressão de David, seguido da agressão física realizada pelo seu pai.

 Em seguida, David se aproxima mais de Katherine e ela lhe conta de sua experiência de rebeldia com seu pai, dando lugar pra isso como um ato criativo. Pensando em como o David conheceu a Katherine, o que seu pai lhe disse sobre ela, percebemos uma autorização do pai do David em relação a Katherine, ela era uma mulher na qual o pai dizia se espelhar. Portanto, David utiliza das palavras de Katherine para se opor ao pai e sair de casa. (FONTANA, 2015)

Percebe-se durante a vida do David o lugar que lhe é imposto pelo pai, através de seus ditos e da repetição do próprio David das palavras do pai. É a partir do encontro com o imperativo paterno -Vencer! que David desencadeia seu surto. A separação do Outro e a entrada no simbólico, é o que permite ao Sujeito maior flexibilização e o discorrimento das palavras, que faz com que um significante seja ligado às palavras, sem que esse seja tomado como significado total. É isso que permite que não se diga tudo sobre o Sujeito. É quando David realiza o desejo do seu pai, ganhando o prêmio com a tal música, que parece não lhe restar mais nada além. (FINK, 2018)

A partir da sua construção de personalidade, hipotetizando uma estrutura psicótica, podemos observar, então, principalmente os distúrbios de linguagem em David. Falhando a inscrição da metáfora paterna, David continua na ordem das relações imaginárias, no qual o Outro é não castrado e portanto devorador. David não adentrou na linguagem, ele é possuído por ela. Ou seja, o Outro fala por ele. Apresentando então a repetição dos ditos paternos e a presença de palavras soltas, interrompidas. (QUINET, 2000)

Quando há o desencadeamento da psicose, David é internado e proibido de tocar, pois na lógica da causalidade, como ele surtou após sua apresentação, o piano se faria danoso para David. Alí David passaria anos, sem sua família, sem poder tocar e sem escora subjetiva alguma para melhora do seu quadro. É apenas com a saída da lógica manicomial e quando volta a tocar que vem a possibilidade de uma estabilização. Para isso, David contou com a sorte de já ter reconhecimento e talento para tal, pois foi quando uma fã que trabalhava no hospital lhe reconheceu, que decidiu tirá-lo dalí. 

Sendo a música "sua melhor amiga", palavras do Peter, David consegue exercê-la a ponto de conseguir emprego e viver disso. Percebemos a música como o maior elemento protetivo do David, são produtos puros do seu inconsciente, pois não advém de necessidades externas, como as de um neurótico, não tendo barreira do recalque, David consegue tocar de corpo todo e assim, favorece uma estabilização do seu quadro. Além disso, é a partir daí que ele encontra sua esposa, que continua casada com ele até hoje e é responsável por organizar a sua vida a ponto de alavancar sua carreira. David continua psicótico, porém estabilizado.

Referente a clínica das psicoses, Lacan se serve de um termo utilizado pelo psiquiatra Falret, para dizer do manejo nesses casos. Lacan nos atenta a posição do analista, dizendo que devemos ocupar o lugar de Secretário do Alienado. Se Falret, utiliza desse termo como crítica, dizendo que não devemos nos manter em posição passiva diante da psicose, levando a sério o que o paciente nos diz, Lacan inverte essa lógica, dizendo que é necessário dar créditos ao alienado, é a partir dele e suas construções para lidar com a estrutura, que deve partir o tratamento. Portanto, se no trato com as neuroses o psicanalista deve se a ver no lugar de Sujeito Suposto Saber, nas psicoses, o analista deve secretariar o alienado, procurando estar ao lado dos saberes do psicótico. (MENDONÇA, 2012)

É nessa mesma lógica que se propõe a psicanálise dentro das instituições de saúde mental, quando trabalhado com sujeitos psicóticos. É quando os profissionais da equipe não seguem por hierarquia e abdicam do seu saber especializado, que diz a Prática de vários. Diferente do trabalho em equipe, no qual todos conversam e debatem, juntando seus conhecimentos a respeito do caso e assim criando uma “solução”, a Prática de vários fala sobre sustentar um “saber não saber”, isso não só por um profissional específico, pois não haveria essa hierarquia, mas por todos os participantes dessa equipe, possibilitando uma formulação própria e singular do sujeito. (FREIRE, 2020)



REFERÊNCIA:


FINK, Bruce. Introdução clínica à psicanálise lacaniana. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2018.

FONTANA, Francis Juliana. Psicoses da teoria à clínica: uma perceptiva Freudiano-Lacaniana. Curitiba: Juruá, 2015.

FREIRE, A. B.; BASTOS, A. Paradoxos em torno da clínica com crianças autistas e psicóticas: uma experiência com a “prática entre vários. Estilos da Clinica, [S. l.], v. 9, n. 17, p. 84-93, 2004. DOI: 10.11606/issn.1981-1624.v9i17p84-93. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/estic/article/view/45983. Acesso em: 19 out. 2020.

LOPES, Rosa Guedes. Psicanálise: um discurso que não é só semblante!. Ágora (Rio J.),  Rio de Janeiro ,  v. 9, n. 2, p. 299-301,  Dec.  2006 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982006000200010&lng=en&nrm=iso>. access on  19 Oct.  2020.  https://doi.org/10.1590/S1516-14982006000200010.

MENDONÇA, Roberto Lopes. O INCONSCIENTE A CÉU ABERTO E A TRANSFERÊNCIA: o secretário do alienado como manejo clínico na psicose. São João del-Rei, MG: PPGPSI-UFSJ, 2012.

PRUDENTE, Regina Coeli Aguiar Castelo; EURICO, Raíza Solany. O AMOR QUE CONSTITUI O SUJEITO: UMA REFLEXÃO SOBRE EXERCÍCIO DA FUNÇÃO MATERNA NO FILME “MALÉVOLA”. PSIQUE, v. 1, n. 1, p. 20-30, 2016.

QUINET, Antonio. Teoria E Clínica Da Psicose . Grupo Gen-Forense Universitária, 2000.


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